terça-feira, 14 de abril de 2020

Transbordar


Sempre que almoçava com o pai transbordava.
Duas, máximo três vezes ano, ficava em baixo. Não há outra palavra. Não era deprimido, pois não se tratava de um estado que o impedisse de avançar, nem melancólico, pois não ficava a pairar. Baixo astral. Sem luz. Baço.

Não gostava de se prender muito às palavras, pois corria o risco de não arriscar nenhuma. Mas
os emparedados. Lembrou-se.

Nesses dias, mais do que nos restantes 363, desejava-o morto. Fazia-lhe contas à herança. Vendia mentalmente tudo, calculava a média mensal a dividir pelos anos que lhe faltavam para a reforma. Desta vez, por exemplo, ele referiu, en passant…, que tinha um terreno para os lados de Mira. Era um lote urbanizado, fez questão de sublinhar.  Quanto valeria, pensou de imediato? Um corno, tinha a certeza. Não tinha jeitinho nenhum para o negócio. Também soube que tinha comprado um carro híbrido (foda-se, já tem 3 carros, para quê o caralho de um híbrido?). Ficava fodido.

Não gostava daquele tipo. Não gostava. Não gostava.
Não
 gos
 Ta
 va.
Igualzinho à mãe. E esta alergia, não vinha do recurso às tristes memórias da adolescência (registadas em diários íntimos).
Era mesmo porque agora lhe via a essência. Não era essencialista, mas aquele tipo era má rés.

Sem comentários:

Enviar um comentário